30.12.10

VUCO, VUCO, VUCO


Ernâni Getirana
Vuco, vuco, vuco, eles faziam aquilo como se estivessem limpando algum rico palácio indiano. Os ladrilhos do chão da casa de tia Doca estavam sempre alvos porque as três mosqueteiras, Manelito e mais um bando de meninos os deixavam assim depois de cada lavagem mensal. Então eram mãos que seguravam baldes com água, e mais mãos a mexerem-se para cá e para lá acompanhadas por seus respectivos pés. Então eram vassouras e baldes d´água e sabão e pedra-mole e mais esfregão. A água da lavagem saía pela porta lateral da casa, através de um orifício no batente. Saindo caía na calçada de pedras cimentadas e desta para a rua propriamente dita. A calçada era alta de forma que, ao precipitar-se para a rua, a água formava pequenas bicas. Alguns moleques, em brevíssimos intervalos de tempo, vinham pôr os peitos do pé sob essas bicas, mas logo eram designados para esta ou para aquela outra missão, que somada às outras dezenas delas, compunham a orquestração de lavagem da casa de tia Doca. 

Comenta-se que um neto de D. Pedro II, de passagem pela cidade durante a inauguração do busto do avô ilustre, sabendo não se sabe como do processo de lavagem da casa de tia Doca, convidara-a para uma animada  e reservada conversa. Tia Doca sentindo-se prestigiada, aproveitou para presentear o rapaz com uma bela rede de linho e uns petiscos de dar água na boca. A ata desse encontro histórico encontra-se na Câmara de Vereador da cidade.

Ao final de tudo, tia Doca dava aos meninos e meninas que a ajudavam bananas, mangas, goiabas, tudo dependendo da época. Também podia ser pão com café, mas nesse caso, só depois de todo mundo tomar banho e trocar de roupa. Menino só é bom sabendo fazer as coisas. Querem banana? Pois banana vão ter. Mas antes precisam dar valor ao que ganham.

As mães dos meninos sabiam do ritmo de tia Doca e concordavam com ela. Até mandavam tia Doca ralhar com um e com outro, chamar-lhes a atenção por alguma falta na escola, alguma diabrura mais cabeluda que houvessem cometido. Mães havia que diziam para as outras que se no tempo que ela era menina não tivesse tia Doca lhes feito alguns ralhos e mesmo falado de forma dura, que elas não seriam as mães dedicadas de hoje.

Quem trazia a água para a lavagem da casa, como sempre, era Manelito. Trazia as cargas de água lá do Bananeira num jumento, subindo duas rampas de faltar o fôlego. Primeiro era a rampa de pedra desde lá do olho d´água até cá em cima, onde passava a estrada. Depois a rampa da Água Boa propriamente dita, que vinha até nas proximidades da quitanda de seu Tomazinho. A partir desse ponto fica conhecida como rampa do Campestre. Pois a casa de seu Mariano ficava na metade da rampa do Campestre. Mais para cima dava uns quarenta e poucos metros, pois a rampa seguia reta até se nivelar, mas aí já de cruzava com a rua da Igreja, que seguia reta passando pela casa do deputado, pelas duas praças a Velha e a da Igreja e seguia reto até findar na cerca do campo de aviação.

Pelas ladeiras Manelito ia sempre montado no lombo do jumento, mastigando seu pão com açúcar e, às vezes, se entupindo com uma banana das da tia Doca. Banana era coisa danada de bom para renovar as forças da gente. Ela vivia dizendo e empurrando a fruta goela abaixo do moleque e das três meninas e de quem aparecesse por lá com cara de fome.

Manelito quando andava no lombo do jumento gostava de fechar os olhos para sentir melhor o sobe-desce cadenciado do animal. Descendo a ladeira da campestre ele ia. Então, agora, estavam passando pela casa de seu Mariano. Isso Manelito sabia porque estavam saindo as músicas do Luis Gonzaga pela rádio Pioneira. A rádio ficava lá na capital e, no entanto, podia-se ouvir ali na casa de mestre Mariano. Tomara que tia Doca comprasse um rádio também. Era a modernidade chegando, como dizia Mestre Mariano. Então tomava fôlego e gritava: Como é que vai o digníssimo senhor? A resposta vinha em forma de uma sonora gargalhada seguida de um caloroso: O rapaz já vai para a primeira buscada d’água? Ao que ele, Manelito, respondia que sim, todo satisfeito. E antes de se distanciar mais perguntava como ia dona Filomena, sua mulher, e o Mimoso, como é que ia, ao que mestre Mariano, com sua voz rouca, saltitante, respondia que ia indo bem.

Mestre Mariano já devia ter para lá de uns oitenta anos de idade. Magrinho, bigodinho ralo de boneca de milho que combinava com os fiapinhos de cabelo branco de sua cabecinha de coco. Andar meio curvado para a frente, mas muito lépido ainda. Muito lúcido era mestre Mariano para saber tocar ainda sua tuba na banda municipal nas retretas dominicais da Praça da Igreja Matriz, sempre na companhia de seu carneirinho de estimação, Mimoso, branco como as hóstias de padre Áureo.

Ora se já não estavam passando defronte do pé de jatobá do alfaiate Gonzaguinha, pois que o cheirinho bom da planta indicava que logo em breve, talvez dentro de duas semanas, ele e a cambada de meninos estariam se estatelando com a guloseima até não poder mais. Trocaria algumas daquelas bananas que tia Doca lhe obrigava a comer por jatobá. Apostava até com quem quisesse que os filhos do alfaiate já deveriam era estar pensando o mesmo que ele ao contrário: jatobá por banana.  A gente deseja mais o que não tem. Manelito, porém, não desejava mais ter sua mãe de volta. Tia Doca era sua mãe desde que ele fora morar com ela quando ainda era um cambito de gente. Que aquilo sim é que era fruta gostosa, aquele pozinho grudando no céu da boca da gente, a gente metendo o dedo para tirar o pozinho de lá de dentro dos gurgurmis, aquilo sim é que era fruta danada de gostosa.

Não, não podia ser, dona Olinda não estava varrendo a calçada àquela hora? Pois se já não eram quase cinco e meia da manhã?! Certamente ela deveria estar com aquela doença das juntas. Na volta daria a notícia à tia Doca e ela lhe mandaria óleo de pequi. Era a única coisa que a faria mexer com a perna de novo. Ele mesmo levaria o óleo. Gostava muito de dona Olinda. Além disso, ela sempre lhe dava aquelas tapiocas quentinhas e amanteigadas quando ele ia lá. Ele nem fazia questão do café. Olha mesmo, pois exatamente agora já estava defronte da quitanda do seu Tomazinho. A nuvenzinha que saída do cigarro de palha de seu Miguel Siliveste, que o pessoal todo chamava de avô, pois aquela nuvenzinha cujo cheirinho ele, Manelito, até gostava indicava a presença do homem sentado no banquinho de madeira ao lado de seu Tomazinho.

Ergueria a mão abanando. Fez. E recebeu de volta a risadinha de seu Tomazinho. Já vai pra lida, moleque Manelito? Boas subidas e boas descidas na menina. Seu Miguel Siliveste chamava a ladeira do Bananeira de menina. Dizia que, da altura (ou fundura?) de seus quase noventa anos, não podia mais subir na menina. Faça isso por mim, meu rapaz, sapecou o ancião ao fim de uma baforada que por alguns segundos impediu que Manelito lhe visse o rosto por completo.

Manelito riu e terminou de engolir o último pedaço de pão com açúcar já quando lhe entrava pelo nariz o cheiro do cigarro do outro. Endireitando a vista para a frente, porque agora todo cuidado era pouco, apurou a vista para um bocadinho mais longe e viu a lâmina de água escura do açude do deputado que já dava cor de si devido à pouca claridade que no entanto já se fazia presente pela barra do dia por trás de Manelito, lá para as bandas da Aroeira. Então tomou rumo para a esquerda e já deu com alguns meninos e jumentos que vinham vindo desde lá de baixo do olho d´água, já cansados. Foram trocas de bons dias e mais bons dias e de como é que vai, e de é a primeira hoje? Estava chegando no começo da ladeira. O cheiro de piçarra cedeu lugar ao cheiro de mat’aparte. Brecou o jumento. Cheiro de oiti. Cheiro de maniçoba. Cheiro de tipi... toc, toc. A pedra grande e preta, agora aquela avermelhada, já a outra mais para o amarelo. Todo cuidado era pouco na ladeira e olhe que a bicha já estava ficando lisa devido à água que caíra sobre as pedras pelo sabalanco das ancoretas e das latas d’água que as meninas não conseguiam evitar porque além de tudo faziam questão de requebrar aqueles quadris só para deixar os botadores d´água doidinhos da silva.

Enfim, a bica d´água. Havia pelo menos mais uns quatro botadores d’ água na sua frente. Foram mais bons dias. Manelito desceu do jumento, respirou fundo, pôs as mãos na cintura e apurou a vista para cima. Sentiu frio, embora estivesse acostumado àquela hora o tempo todo só de calção e descalço. Desejava às vezes ainda estar na rede todo enroladinho. Quando era tempo de inverno o frio era de rachar. As árvores enormes com seus grossos troncos escurecidos fechavam-se lá em cima em copa sobre homens, meninos e animais, sobre o olho dá água, mal deixando um tantinho assim de céu para se ver. Não passava ainda das seis da manhã.

Começara botar água ainda bem pequeno. Aos nove já se lembrava de subir a ladeira no lombo do jumento de Chico Farofa que naquela época era o botador de água oficial de tia Doca. Aos doze já botava água sozinho, sendo ajudado pelos botadores mais velhos aqui e ali, quando a força bruta era necessária. Agora, aos dezesseis, fazia de um tudo. Dava conta do recado direitinho. Cuidava dos jumentos direitinho. Cuidava das ancoretas direitinho. 

Quando chegaram cá em cima da primeira ladeira, de volta, ancoretas cheias, jumento e menino estavam cansados e a passarada já enchia aquilo tudo lá embaixo de canto. Olhando para cima Manelito empreendeu a subida da segunda ladeira. Mas uma boa lavagem na casa da tia Doca não saia por menos de quatro cargas d´água. Então nas noites que se sucediam à lavagem era gente indo dormir cedo da noite, moidinha de fazer dó.

Porque tia Doca não deixava por menos. Não era só ir jogando água no chão com a ajuda de uma lata, de uma cuia que fosse. Isso era o de menos. Jogada a água ela, com os olhinhos apertados e seu hein, hein vinha dizendo para a turma onde era para pôr mais água, mais pedra-mole, mais sabão. Depois dizia onde era para esfregar mais de cum força, mais devagar, onde precisava mais de cuidado com os riscos do ladrilho e uma infinidade de coisinhas miúdas que deixavam a turma da limpeza de estalar os nervos e, às vezes, faiscando de raiva. Mas era raivinha que durava pouco. Se padre Áureo dizia nos sermões que a porta do céu era estreita, avaliasse mesmo a porta da casa de tia Doca que nem muito estreita era e o céu estava logo ali.

Às vezes era a própria tia Doca quem ficava de joelhos, pés descalços a esfregar com sabugo de milho um ladrilho que apresentasse uma mancha mais resistente. Depois de muito hein, hein, e vuco, vuco, mandava pôr um pouco de água devagarzinho, devagarinho, só para experimentar se estava bom ou não de limpeza.

(Trecho do livro inédito A Toca da Tia Doca)

SIGA-ME NO TWITTER @Getirana

Nenhum comentário: