30.12.10

CHUVA DE BALA

Havia, naquele tempo, dois tipos de armas de fogo. As bem acabadas e as mal acabadas. As primeiras pertenciam aos coroneis e seus capangas. As outras, aos caboclos que terminavam servindo a um ou a outro coronel, ao fim das contas. De tão rústicas, essas armas improvisadas eram chamadas de paus-de-fogo. Se você fosse emboscado por alguém com uma pau-de-fogo, melhor seria pedir a Deus nosso senhor Jesus Cristo para morrer logo o mais depressa possível.  Naquela horinha mesmo, num tempinho entre o estinliguiesculacho do couro e o sapecamento do corpo mortinho da silva no chão. Atingido, e não morte de imediato, o sujeito se via numa situação constrangedora. Cegado pela chuva de bolinhas de chumbo e tendo que segurar os intestinos com as mãos, abertos os intestinos na horizontal por uma peixeirada, ficava vulnerável para a próxima saraivada cuspida de dentro de uma moita qualquer para onde o esfaqueador voltara. Pai e filho unidos na vingança. Esses crimes com armas improvisadas eram, geralmente, cometidos por maridos corneados, pais tentando recuperar a honra de filhas defloradas, cobradores de dívidas não pagas e coisas assim. Claro que, às vezes, para disfarçar, os coroneis lançavam mão desse tipo de armas para encobrirem melhor sua sede assassina por vingança. Essa última observação é por conta de um cronista da época, Epaminondas Gorbelindo Freitas da Silva e quem discordar que vá conversar com o mesmo em um cemitério, em Teresina. Faz setenta anos que ele está lá, debaixo de sete palmos de terra, alvejado exatamente por uma pau-de-fogo. E eu não tenho tempo nem disposição para explicar o acontecido aqui.

O emboscador calculava bem a coisa toda. O tempo que o desgraçado levaria para sangrar por tudo que era buraco, onde cairia só arquejando e, se tudo corresse como esperado, o assassino até se arriscaria a se identificar para o moribundo e dizer em alto e bom som o nome de quem o acabara de mandar dessa para uma melhor de uma vez para sempre, seu filho de uma puta.

Para o emboscado por armas bem acabadas, as coisas não eram, lá, muito diferentes. Apenas mais rápidas. Geralmente eram dois emboscadores. Um mirava na cabeça e o outro no tórax do condenado. Mais precisamente no coração. Dessa forma, morria-se mais rápido sem sentir muita dor. Isso em tese. Porque o negócio não é propriamente se morrer, mas ficar refém do maldito do sofrimento entre foder ou ter que sair de cima, se o filho da puta do emboscador fizer a desfeita de me errar o alvo e as malditas bolinhas de chumbo se esparramarem como caganeira...  Como costumava dizer Zé Peba, um dos mais temidos capangas daqueles tempos. Aliás, este morreria da maneira mais banal possível, de um escorregão numa casca de banana na ladeira do Pirapora. Pelo menos é o que conta ainda hoje mestre Raimundo Chaves, do alto de seus oitenta e poucos anos de vida. O mestre mora na Curva do Cotovelo, numa casa cujas paredes de pedra são uma belezura, segundo minha amiga socióloga me asseverou. Sempre que vou lá para as bandas do Morro do Gritador dou um jeito de passar pela casa do mestre para trocar uma prosa, tomar café com tapioca feito por sua filha e aprender sobre as coisas todas dessa terra de Nossa Senhora da Conceição, professor. Essas coisas dos Cafundós, o senhor tá me acompanhando?

Mas por que de se identificar para o moribundo antes que esse espichasse as canelas?  Porque muito mais que acabar com a raça do desgraçado interessava aos coroneis (eles quase sempre eram os mandantes) que o filho da puta fosse para o inferno sabendo quem tinha lhe comprado a passagem só de ida. Era assim que Zé Peba entendia a coisa toda, como entende mestre Raimundo Chaves.

Uma vez atingido pelas balas, o sangue que jorrava abundantemente era engolfado pela areia, muito abundante também nessas terras dos Irmãos Pereira. Mas piçarra também servia ao mesmo propósito de esconder as pistas mais evidentes do crime.

O crime, ele mesmo, porém, tinha que ser exposto com certa obscenidade que era para que todos soubessem, desconfiando, quem era que mandava, afinal, naquela merda ali de cidade.

A essa altura, segundo mestre Raimundo Chaves, Zé Peba já havia bebido umas seis doses de Serrana e falava pelos cotovelos. Mestre Raimundo Chaves diz que ele chegava a beber três garrafas de Serrana numa noitada só. No fim da vida, Zé Peba deu pra dar com a língua nos dentes, nos poucos que lhe restaram, e havia gente importante com medo de que, embriagado, ele metesse de uma vez por todas o pé na merda. Esse filho da puta ainda vai estrepar todo mundo, teria escarrado dos pulmões certo figurão da cidade. Tá na hora de botar uma rolha no cu dele.

Mestre Raimundo Chaves me confidenciou um desses acontecidos. No caso não foi propriamente uma emboscada no meio do mato por um ou dois capangas. Trata-se de uma cena de guerra urbana na qual se misturaram, provavelmente, o maior número de pessoas e cartuchos de bala por centímetro quadrado de que já se ouviu falar em Pedro II.

Você pode me acreditar que foi desse jeito mesmo. A capangada do Coronel de Cima, na verdade os revoltosos da Coluna, a capangada toda chegou de repente e começou a trovoar bala pra tudo que era canto pápápápápápá. Eu tava lá, eu vi. Primeiro se ouviu um chafurdar de pombo lá em cima da cumeeira da casa do Coronel de Baixo. E aí foi que veio a primeira saraivada de bala: páááá! E depois mais outra e mais outra: páááá! Páááá! E era um Deus nos acuda. Páááá!!! Todo mundo jogado no chão por ordem do coronel. Páááá´!!! Todo mundo se arrastando feito cobra, se enfurnado por debaixo das coisas feito peba. Pááá´!!! E foi aí que eu e mais outros três se passamo para o quarto de armamento e começemo a tirar as arma, uma a uma. As mulher é que ia carregando as arma e a gente começou a retribuir os tiro dos filho de uma égua que se aquartelava lá pras banda da pracinha. E tome tiro e tome tiro e nós devolvendo os balaço. Pááá´!!!! Quando terminou tudin e não ouvimo mais um estalar de nadinha. Fumo nos levantando do chão. E alguns de nós, mais afoito, pusero primeiro uma banda da cara e depois a outra para de fora da casa até sair de corpo inteiro. Quando foi minha vez, que eu saí e depois de andar uns passo me virei pro rumo da casa que tava nas minha costa, levei um susto danado. A parede da frente parecia taba de pirulito, todinha crivada de bala. Sou um cabra corajoso, mas o senhor pode me acreditar que eu tremia feito vara verde. Aí foi a vez de verificá se alguém tava baleado. Num tava não. Por milagre. Por puro milagre. O outro lado tinha batido em debandada. Coisas da política, num sabe?

Dali a uma semana, uma semana e pouco Zé Peba foi encontrado morto na ladeira do Pirapora. Uma casca de banana. E mestre Raimundo Chaves disse isso com um riso triste enquanto ajeitava o cachimbo. E remendou: imagine mermo, um cabra danado como era Zé Peba, de metê medo até no capeta morrê pur causa de uma casca de banana, imagine mermo. Cuma é que pode? Isso me faz lembrá as canturia de Antonio Sem-Braço, o sinhô não cunheceu não. Morreu faz tempo. Ele fazia canturia e numa delas contava a história de um general romano que perdeu tudo que tinha por amor de uma muié, mas aí é bem diferente, num é? Agora, casca de banana, essa não. Depois ficou pitando em silêncio.

Veio o café saboroso. Tomei e fiquei proseando mais um tantinho com o homem. Depois levantei-me, dei uma pancadinha em seu ombro e me despedi em silêncio. Em silêncio? Disse que o Gritador me esperava. Ou pelo menos devo ter dito. É, disse isso mesmo. Ele sorriu de dentro da nuvem de fumaça do cachimbo.

Uma vez contei essa história para os dos debaixo da figueira. Naquela noite todos deixamos a figueira cabisbaixos, andando para casa, como de costume, em pequenos grupos mergulhados em silêncio espreitados pela alma de Zé Peba escorregando em cascas e cascas de banana eternamente, não foi mesmo seu Vicente da comadre Joana?

 (Trecho do livro "Debaixo da Figuiera do Meu Avô", com previsão de publicação em 2011)

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VUCO, VUCO, VUCO


Ernâni Getirana
Vuco, vuco, vuco, eles faziam aquilo como se estivessem limpando algum rico palácio indiano. Os ladrilhos do chão da casa de tia Doca estavam sempre alvos porque as três mosqueteiras, Manelito e mais um bando de meninos os deixavam assim depois de cada lavagem mensal. Então eram mãos que seguravam baldes com água, e mais mãos a mexerem-se para cá e para lá acompanhadas por seus respectivos pés. Então eram vassouras e baldes d´água e sabão e pedra-mole e mais esfregão. A água da lavagem saía pela porta lateral da casa, através de um orifício no batente. Saindo caía na calçada de pedras cimentadas e desta para a rua propriamente dita. A calçada era alta de forma que, ao precipitar-se para a rua, a água formava pequenas bicas. Alguns moleques, em brevíssimos intervalos de tempo, vinham pôr os peitos do pé sob essas bicas, mas logo eram designados para esta ou para aquela outra missão, que somada às outras dezenas delas, compunham a orquestração de lavagem da casa de tia Doca. 

Comenta-se que um neto de D. Pedro II, de passagem pela cidade durante a inauguração do busto do avô ilustre, sabendo não se sabe como do processo de lavagem da casa de tia Doca, convidara-a para uma animada  e reservada conversa. Tia Doca sentindo-se prestigiada, aproveitou para presentear o rapaz com uma bela rede de linho e uns petiscos de dar água na boca. A ata desse encontro histórico encontra-se na Câmara de Vereador da cidade.

Ao final de tudo, tia Doca dava aos meninos e meninas que a ajudavam bananas, mangas, goiabas, tudo dependendo da época. Também podia ser pão com café, mas nesse caso, só depois de todo mundo tomar banho e trocar de roupa. Menino só é bom sabendo fazer as coisas. Querem banana? Pois banana vão ter. Mas antes precisam dar valor ao que ganham.

As mães dos meninos sabiam do ritmo de tia Doca e concordavam com ela. Até mandavam tia Doca ralhar com um e com outro, chamar-lhes a atenção por alguma falta na escola, alguma diabrura mais cabeluda que houvessem cometido. Mães havia que diziam para as outras que se no tempo que ela era menina não tivesse tia Doca lhes feito alguns ralhos e mesmo falado de forma dura, que elas não seriam as mães dedicadas de hoje.

Quem trazia a água para a lavagem da casa, como sempre, era Manelito. Trazia as cargas de água lá do Bananeira num jumento, subindo duas rampas de faltar o fôlego. Primeiro era a rampa de pedra desde lá do olho d´água até cá em cima, onde passava a estrada. Depois a rampa da Água Boa propriamente dita, que vinha até nas proximidades da quitanda de seu Tomazinho. A partir desse ponto fica conhecida como rampa do Campestre. Pois a casa de seu Mariano ficava na metade da rampa do Campestre. Mais para cima dava uns quarenta e poucos metros, pois a rampa seguia reta até se nivelar, mas aí já de cruzava com a rua da Igreja, que seguia reta passando pela casa do deputado, pelas duas praças a Velha e a da Igreja e seguia reto até findar na cerca do campo de aviação.

Pelas ladeiras Manelito ia sempre montado no lombo do jumento, mastigando seu pão com açúcar e, às vezes, se entupindo com uma banana das da tia Doca. Banana era coisa danada de bom para renovar as forças da gente. Ela vivia dizendo e empurrando a fruta goela abaixo do moleque e das três meninas e de quem aparecesse por lá com cara de fome.

Manelito quando andava no lombo do jumento gostava de fechar os olhos para sentir melhor o sobe-desce cadenciado do animal. Descendo a ladeira da campestre ele ia. Então, agora, estavam passando pela casa de seu Mariano. Isso Manelito sabia porque estavam saindo as músicas do Luis Gonzaga pela rádio Pioneira. A rádio ficava lá na capital e, no entanto, podia-se ouvir ali na casa de mestre Mariano. Tomara que tia Doca comprasse um rádio também. Era a modernidade chegando, como dizia Mestre Mariano. Então tomava fôlego e gritava: Como é que vai o digníssimo senhor? A resposta vinha em forma de uma sonora gargalhada seguida de um caloroso: O rapaz já vai para a primeira buscada d’água? Ao que ele, Manelito, respondia que sim, todo satisfeito. E antes de se distanciar mais perguntava como ia dona Filomena, sua mulher, e o Mimoso, como é que ia, ao que mestre Mariano, com sua voz rouca, saltitante, respondia que ia indo bem.

Mestre Mariano já devia ter para lá de uns oitenta anos de idade. Magrinho, bigodinho ralo de boneca de milho que combinava com os fiapinhos de cabelo branco de sua cabecinha de coco. Andar meio curvado para a frente, mas muito lépido ainda. Muito lúcido era mestre Mariano para saber tocar ainda sua tuba na banda municipal nas retretas dominicais da Praça da Igreja Matriz, sempre na companhia de seu carneirinho de estimação, Mimoso, branco como as hóstias de padre Áureo.

Ora se já não estavam passando defronte do pé de jatobá do alfaiate Gonzaguinha, pois que o cheirinho bom da planta indicava que logo em breve, talvez dentro de duas semanas, ele e a cambada de meninos estariam se estatelando com a guloseima até não poder mais. Trocaria algumas daquelas bananas que tia Doca lhe obrigava a comer por jatobá. Apostava até com quem quisesse que os filhos do alfaiate já deveriam era estar pensando o mesmo que ele ao contrário: jatobá por banana.  A gente deseja mais o que não tem. Manelito, porém, não desejava mais ter sua mãe de volta. Tia Doca era sua mãe desde que ele fora morar com ela quando ainda era um cambito de gente. Que aquilo sim é que era fruta gostosa, aquele pozinho grudando no céu da boca da gente, a gente metendo o dedo para tirar o pozinho de lá de dentro dos gurgurmis, aquilo sim é que era fruta danada de gostosa.

Não, não podia ser, dona Olinda não estava varrendo a calçada àquela hora? Pois se já não eram quase cinco e meia da manhã?! Certamente ela deveria estar com aquela doença das juntas. Na volta daria a notícia à tia Doca e ela lhe mandaria óleo de pequi. Era a única coisa que a faria mexer com a perna de novo. Ele mesmo levaria o óleo. Gostava muito de dona Olinda. Além disso, ela sempre lhe dava aquelas tapiocas quentinhas e amanteigadas quando ele ia lá. Ele nem fazia questão do café. Olha mesmo, pois exatamente agora já estava defronte da quitanda do seu Tomazinho. A nuvenzinha que saída do cigarro de palha de seu Miguel Siliveste, que o pessoal todo chamava de avô, pois aquela nuvenzinha cujo cheirinho ele, Manelito, até gostava indicava a presença do homem sentado no banquinho de madeira ao lado de seu Tomazinho.

Ergueria a mão abanando. Fez. E recebeu de volta a risadinha de seu Tomazinho. Já vai pra lida, moleque Manelito? Boas subidas e boas descidas na menina. Seu Miguel Siliveste chamava a ladeira do Bananeira de menina. Dizia que, da altura (ou fundura?) de seus quase noventa anos, não podia mais subir na menina. Faça isso por mim, meu rapaz, sapecou o ancião ao fim de uma baforada que por alguns segundos impediu que Manelito lhe visse o rosto por completo.

Manelito riu e terminou de engolir o último pedaço de pão com açúcar já quando lhe entrava pelo nariz o cheiro do cigarro do outro. Endireitando a vista para a frente, porque agora todo cuidado era pouco, apurou a vista para um bocadinho mais longe e viu a lâmina de água escura do açude do deputado que já dava cor de si devido à pouca claridade que no entanto já se fazia presente pela barra do dia por trás de Manelito, lá para as bandas da Aroeira. Então tomou rumo para a esquerda e já deu com alguns meninos e jumentos que vinham vindo desde lá de baixo do olho d´água, já cansados. Foram trocas de bons dias e mais bons dias e de como é que vai, e de é a primeira hoje? Estava chegando no começo da ladeira. O cheiro de piçarra cedeu lugar ao cheiro de mat’aparte. Brecou o jumento. Cheiro de oiti. Cheiro de maniçoba. Cheiro de tipi... toc, toc. A pedra grande e preta, agora aquela avermelhada, já a outra mais para o amarelo. Todo cuidado era pouco na ladeira e olhe que a bicha já estava ficando lisa devido à água que caíra sobre as pedras pelo sabalanco das ancoretas e das latas d’água que as meninas não conseguiam evitar porque além de tudo faziam questão de requebrar aqueles quadris só para deixar os botadores d´água doidinhos da silva.

Enfim, a bica d´água. Havia pelo menos mais uns quatro botadores d’ água na sua frente. Foram mais bons dias. Manelito desceu do jumento, respirou fundo, pôs as mãos na cintura e apurou a vista para cima. Sentiu frio, embora estivesse acostumado àquela hora o tempo todo só de calção e descalço. Desejava às vezes ainda estar na rede todo enroladinho. Quando era tempo de inverno o frio era de rachar. As árvores enormes com seus grossos troncos escurecidos fechavam-se lá em cima em copa sobre homens, meninos e animais, sobre o olho dá água, mal deixando um tantinho assim de céu para se ver. Não passava ainda das seis da manhã.

Começara botar água ainda bem pequeno. Aos nove já se lembrava de subir a ladeira no lombo do jumento de Chico Farofa que naquela época era o botador de água oficial de tia Doca. Aos doze já botava água sozinho, sendo ajudado pelos botadores mais velhos aqui e ali, quando a força bruta era necessária. Agora, aos dezesseis, fazia de um tudo. Dava conta do recado direitinho. Cuidava dos jumentos direitinho. Cuidava das ancoretas direitinho. 

Quando chegaram cá em cima da primeira ladeira, de volta, ancoretas cheias, jumento e menino estavam cansados e a passarada já enchia aquilo tudo lá embaixo de canto. Olhando para cima Manelito empreendeu a subida da segunda ladeira. Mas uma boa lavagem na casa da tia Doca não saia por menos de quatro cargas d´água. Então nas noites que se sucediam à lavagem era gente indo dormir cedo da noite, moidinha de fazer dó.

Porque tia Doca não deixava por menos. Não era só ir jogando água no chão com a ajuda de uma lata, de uma cuia que fosse. Isso era o de menos. Jogada a água ela, com os olhinhos apertados e seu hein, hein vinha dizendo para a turma onde era para pôr mais água, mais pedra-mole, mais sabão. Depois dizia onde era para esfregar mais de cum força, mais devagar, onde precisava mais de cuidado com os riscos do ladrilho e uma infinidade de coisinhas miúdas que deixavam a turma da limpeza de estalar os nervos e, às vezes, faiscando de raiva. Mas era raivinha que durava pouco. Se padre Áureo dizia nos sermões que a porta do céu era estreita, avaliasse mesmo a porta da casa de tia Doca que nem muito estreita era e o céu estava logo ali.

Às vezes era a própria tia Doca quem ficava de joelhos, pés descalços a esfregar com sabugo de milho um ladrilho que apresentasse uma mancha mais resistente. Depois de muito hein, hein, e vuco, vuco, mandava pôr um pouco de água devagarzinho, devagarinho, só para experimentar se estava bom ou não de limpeza.

(Trecho do livro inédito A Toca da Tia Doca)

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A DURA VIDA DOS PEQUENOS GARIMPEIROS DE OPALA DE PEDRO II - PI

 
Nas profundezas dos garimpos, como pudemos presenciar, os sons do ambiente ao redor praticamente silenciam, restando o barulho ritmado das ferramentas, às vezes por cerca de uma hora antes que algum bamburrista pare abruptamente, recoloque a espinha dorsal em posição ereta e enxugue com o dorso da mão escondida em uma luva velha e surrada, o suor que poreja na testa. É comum, nesse momento, que os bamburristas lancem um olhar panorâmico pelo garimpo como a quererem avaliar o quanto já trabalharam até àquela hora do dia, como costumam se referir à passagem do tempo. Essa é tomada, geralmente, pela sombra projetada por uma das paredes do barreiro, independentemente da existência de relógios que um ou outro conduz.

Lima, Ernâni Getirana de. 2008 (da Dissertação de mestrado - UFPI)


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29.12.10

O CIRCO

O serviço de som mal havia sido montado e a meninada já se perfilava aos gritos e aos pulos diante da rural velha, caída aos pedaços. O palhaço perna-de-pau tomou a frente e, com um megafone de flandres, emendou:
-          Hoje tem espetáculo? Ao que os ensurdecedores meninos respondiam:
-          Tem, sim, senhor!
-          Às nove horas da noite?
-          É, sim, senhor!
-          Eu quero ver, eu quero ver.
-          A Maria Terêrê!
-          E aí, criançadaaaaaaaaaaaaaaaaaa! E o palhaço, o quê é?
-          É ladrão de mulher!

A turba sumiu na esquina da Piladeira de Arroz. Era uma construção robusta, construída com pedra lisa e argamassa. Nos fundos havia um monte enorme de palha de arroz quase tão alto quanto a cumeeira da casa. As máquinas haviam parado de trabalhar há pouco e os empregados suando em bicas saíram à calçada para apreciar o corso circense que seguia agora para as bandas do Campestre. Depois foram todos em magote tomar banho no Pirapora.

Ao passar pela avenida Coronel Cordeiro a viúva do cabo Xavier ousou pôr o rosto magro e sofrido para fora da janela. Um quase riso revelou-se-lhe nas faces. O finado adorava circo. Mal chegava um na cidade e era ele quem se oferecia para fazer a guarda. Assim conseguia umas cortesias para os dois filhos mais ela. Ficava na entrada do circo o mais que podia. Mas tão logo o espetáculo começava e ele dava um jeito de pôr em seu lugar um subordinado e ia assistir ao espetáculo com a família. Agora nem mais essas pequenas alegrias iam ter em família. Não depois daquele tiro certeiro no meio da testa que nem deixou que ele fechasse os olhos. Quando o viu estirado na calçada parecia que não era ele. Por alguns instantes pensava se tratar de um boneco. Embora se parecesse demais com ele. Sim, era ele, sem dúvida. Com aqueles olhos vidrados em seu assassino antes de ir-se para sempre.

Torquato Filho  também parou antes do beco dos Carrapichos e ficou olhando para aquela arrumação. O palhaço das pernas de pau, ao longe, era a única figura que se destacava da massa compacta. Ele teve dificuldade em enxergar mais porque o sol poente lhe varava a visão. Mesmo com o dorso da mão servindo-lhe de anteparo, os olhos começaram a lacrimejar. Ajeitou a toalha no ombro e rumou para o banho das seis horas da tarde lá no Pirapora.

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O PEQUENO YTIWAUA


Ernâni Getirana
Há um riozinho no Japão que tem apenas três quilômetros de extensão. Seu nome em japonês é Ytiwaua, que deve significar rio pequeno. Pelo menos eu acho. Porque as outras possibilidades de tradução seriam: rio que desce das montanhas, ou rio que passa pelo arrozal, ou rio para se ver à tarde pela TV, sentado no sofá da sala de estar. E foi assim meu primeiro e único encontro com o riozinho.
Confesso minha ignorância. Não sei o que significa Ytiwaua. Nem sei se se escreve assim. Mas sei que é uma bonita palavra. Quando eu a pronuncio fico com medo de não poder mais parar de pronunciá-la e de ficar eternamente dizendo: Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua até que algum japonês maluco me ouvisse do outro lado do mundo, através das correntes de ar que bailam pela atmosfera azulada do planeta.
Ou mesmo que algum pássaro encantado pudesse levar a palavra no bico e a despejasse sobre o Japão. João, um amigo, mais velho um ano que eu e tão avoado como eu é que fica dizendo que eles existem, os tais pássaros encantados. Já andou até levando uns cocorotes do pai para deixar dessas besteiras, mas não deixa não.
Ytiwaua deve ser uma palavra que representa tudo o que é belo e bom. Gostaria muito que o mundo fosse Ytiwaua e que não houvesse essas bombas explodindo dentro das roupas das pessoas, esses aviões atravessando arranha-céus, essas matilhas de crianças e de velhos famintos despejadas pelas ruas imundas da cidade, essas enchentes engolindo as cidades, esse clima pesado de o homem ser o lobo do homem, como me explicou um dia desses um tio meu, professor de filosofia.
Seria mesmo o Ytiwaua um rio para se conhecer pela TV do sofá da sala de estar? Pode ser que não, mas pode ser que sim; pois foi assim que eu o conheci e me encantei por ele. O Ytiwaua agora corre pela minha vida afora.
Bem, pelo menos foi esse um dos começos que imaginei para o livro que um dia achei que iria escrever. Eu na pele de um garoto de uns doze anos, por aí. Mas terminei por descartar esse início, por achar que pudesse ficar infantil demais e não era bem isso que tinha em mente para o livro. A outra possibilidade mais remota seria escrever um artigo sobre o rio. Algo como “O rio Ytiwaua e sua contribuição para o contaminado ecossistema japonês”. Cheguei mesmo a iniciar pesquisa nesse sentido, mas também desisti porque não encontrei em nenhum lugar a garantia real da existência do Ytiwaua. Então o jeito é confiarem em mim, isto é no fato de que existe tal rio no Japão e sem mais demora aqui vou contar como eu fiquei encantado por ele.
O riozinho faz parte de um emaranhado de outros cursos d’água que vão se somando a um sem número de outros e, assim, compondo uma ramificação aquática complexa que tem início, sobretudo, no degelo das altíssimas cadeias de montanhas e termina por desaguar no Mar do Japão. Com uma extensão de pouco mais de três quilômetros.
Bem, esse início também seria descartado por mim tempos depois. Ele ficara técnico demais e não era isso também que tinha em mente para meu livro. Que tal o famoso... Era uma vez um riozinho japonês chamado Ytiwaua? Não, não, o riozinho merecia algo mais criativo.
Depois desse tempo todo lecionando para um mar de crianças e jovens, muitos conceitos têm mudado o tempo todo dentre da minha cabeça. O Ytiwaua, porém, me trouxe um rejuvenecimento de ideias que há muito não sentia. Por isso, talvez só por isso, meu livro sobre o riozinho deva ser como ele mesmo: tranquilo, calmo, algo que vá sendo desvelado aos poucos, ao tiquinhos.
Mas para isso é preciso estar atento a tudo, a cada detalhe do percurso, a cada nuance do caminho, à gota de água que se liquefaz no alto das montanhas e vai compor o Ytiwaua, à palha de capim que verga quando essa gota misturada a outros zilhões de gotas a roça, à restiazinha que corta feito um dardo a capa de água transparente deixando o olho perceber o que há lá embaixo, no fundo do rio onde pequenos torvelinhos borbulham e então podemos ver o leito do rio com toda sorte de coisinhas acontecendo, acontecendo... E, ainda assim, o mistério permanece não propriamente como algo que se esconde e, por isso, provoque sua busca. Talvez o mistério não apenas o que habita o Ytiwaua seja a busca, ela mesma, vinda de nós mesmos, esses seres que somos, espaço no qual o universo descobre-se a si mesmo.

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