27.12.10

DEBAIXO DA FIGUEIRA DO AVÔ


 Ernâni Getirana

O assunto preferido dele era as árvores. Sempre que dava metia árvores em tudo que era assunto. Ele dizia, por exemplo, que achava incrível o poder que as árvores parecem ter sobre nós, pobres parasitas humanos. Tão incríveis, dizia, quanto a nossa incapacidade atual de perceber isso e preservá-las. De rabos presos ao progresso a todo custo, os humanos têm-se distanciado física e poeticamente dos seres vegetais e, por isso mesmo, tornado-se mais ocos e vazios. Há um ditado chinês segundo o qual quem pensa no futuro planta árvores. E depois desse ponto vinha com uma conversa sem fim sobre uma africana, Watari Matai, uma mulher que já plantou mais de dois milhões de árvores na África. Ganhou o prêmio Nobel da paz, inclusive por isso. Disse isso olhando para o imenso pequizeiro que se destacava contra o azul do céu, lá para as bandas do quintal.

Esqueceu Watari e voltou-se pra dentro de si. Disse que algumas árvores haviam marcado profundamente sua vida. Conseguia lembrar-se sem muito esforço de pelo menos quatro delas: o pé de Tamboril do mercado púbico, o pé de Tamarindo da antiga Casa Paroquial, o pé de Jasmim Caiano do quintal da casa de seus avós maternos e a Figueira que ficava debaixo da calçada da mesma casa.

Quando criança, subia, apesar do medo de altura, em árvores e desenvolveu por elas relações amorosas só percebidas racionalmente anos depois, já adulto. Colhia seus frutos, armava balanços ou simplesmente ficava ali, só pelo prazer de estar ali no meio de suas folhagens, debaixo de suas sombras. Seus troncos grossos com cascas caraquentas eram apenas o início da aventura. Os galhos eram o limite. Os frutos a recompensa. Era um ser adâmico dependente da árvore da vida, dizia isso em meio a um largo sorriso.

E era sempre com um sorriso no rosto que costumava pregar que as árvores nos ensinam o tempo todo. Durante aulas de Educação Ambiental, por exemplo, é comum que professores peçam as pessoas para ficarem por alguns segundos sob um sol a pino. Em seguida as levam para debaixo de uma árvore frondosa e pedem que elas relatem essa experiência. As árvores são tão importantes que ocupam o centro de muitos mitos: Árvore da Vida, Árvore da Sabedoria e do Conhecimento e de histórias fantásticas como a Árvore do Enforcado e a Árvore da Meia Noite, dentre outras. Isso ele lera nos livros da biblioteca municipal que, por sinal, ficava ao lado de uma imponente pitombeira.

Alertou, porém para o fato de que a árvore de que ia tratar não existe mais. Não como árvore ela mesma. O progresso a ceifou há tempos. Foi-se para nunca mais. Eis que, agora, ela só existe na floresta da memória dele e na memória de quantos a viram e usufruíram de sua sombra e de seu frescor.

A figueira do avô dele existe enquanto lembrança presa na cabeça do neto, por dentro, oxigenando outras muitas lembranças que estavam meio entaladas não sabia bem onde. Talvez nas malhas do senhor Chronos, o tempo, devorador dos próprios filhos. Mas é que sem o tempo não há vida nem memória. E memória é tudo. Para o bem ou para o mal, está me ouvindo? E me olhou dentro dos olhos com aqueles olhos de criança que ainda mantinha.


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