29.12.10

O PEQUENO YTIWAUA


Ernâni Getirana
Há um riozinho no Japão que tem apenas três quilômetros de extensão. Seu nome em japonês é Ytiwaua, que deve significar rio pequeno. Pelo menos eu acho. Porque as outras possibilidades de tradução seriam: rio que desce das montanhas, ou rio que passa pelo arrozal, ou rio para se ver à tarde pela TV, sentado no sofá da sala de estar. E foi assim meu primeiro e único encontro com o riozinho.
Confesso minha ignorância. Não sei o que significa Ytiwaua. Nem sei se se escreve assim. Mas sei que é uma bonita palavra. Quando eu a pronuncio fico com medo de não poder mais parar de pronunciá-la e de ficar eternamente dizendo: Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua, Ytiwaua até que algum japonês maluco me ouvisse do outro lado do mundo, através das correntes de ar que bailam pela atmosfera azulada do planeta.
Ou mesmo que algum pássaro encantado pudesse levar a palavra no bico e a despejasse sobre o Japão. João, um amigo, mais velho um ano que eu e tão avoado como eu é que fica dizendo que eles existem, os tais pássaros encantados. Já andou até levando uns cocorotes do pai para deixar dessas besteiras, mas não deixa não.
Ytiwaua deve ser uma palavra que representa tudo o que é belo e bom. Gostaria muito que o mundo fosse Ytiwaua e que não houvesse essas bombas explodindo dentro das roupas das pessoas, esses aviões atravessando arranha-céus, essas matilhas de crianças e de velhos famintos despejadas pelas ruas imundas da cidade, essas enchentes engolindo as cidades, esse clima pesado de o homem ser o lobo do homem, como me explicou um dia desses um tio meu, professor de filosofia.
Seria mesmo o Ytiwaua um rio para se conhecer pela TV do sofá da sala de estar? Pode ser que não, mas pode ser que sim; pois foi assim que eu o conheci e me encantei por ele. O Ytiwaua agora corre pela minha vida afora.
Bem, pelo menos foi esse um dos começos que imaginei para o livro que um dia achei que iria escrever. Eu na pele de um garoto de uns doze anos, por aí. Mas terminei por descartar esse início, por achar que pudesse ficar infantil demais e não era bem isso que tinha em mente para o livro. A outra possibilidade mais remota seria escrever um artigo sobre o rio. Algo como “O rio Ytiwaua e sua contribuição para o contaminado ecossistema japonês”. Cheguei mesmo a iniciar pesquisa nesse sentido, mas também desisti porque não encontrei em nenhum lugar a garantia real da existência do Ytiwaua. Então o jeito é confiarem em mim, isto é no fato de que existe tal rio no Japão e sem mais demora aqui vou contar como eu fiquei encantado por ele.
O riozinho faz parte de um emaranhado de outros cursos d’água que vão se somando a um sem número de outros e, assim, compondo uma ramificação aquática complexa que tem início, sobretudo, no degelo das altíssimas cadeias de montanhas e termina por desaguar no Mar do Japão. Com uma extensão de pouco mais de três quilômetros.
Bem, esse início também seria descartado por mim tempos depois. Ele ficara técnico demais e não era isso também que tinha em mente para meu livro. Que tal o famoso... Era uma vez um riozinho japonês chamado Ytiwaua? Não, não, o riozinho merecia algo mais criativo.
Depois desse tempo todo lecionando para um mar de crianças e jovens, muitos conceitos têm mudado o tempo todo dentre da minha cabeça. O Ytiwaua, porém, me trouxe um rejuvenecimento de ideias que há muito não sentia. Por isso, talvez só por isso, meu livro sobre o riozinho deva ser como ele mesmo: tranquilo, calmo, algo que vá sendo desvelado aos poucos, ao tiquinhos.
Mas para isso é preciso estar atento a tudo, a cada detalhe do percurso, a cada nuance do caminho, à gota de água que se liquefaz no alto das montanhas e vai compor o Ytiwaua, à palha de capim que verga quando essa gota misturada a outros zilhões de gotas a roça, à restiazinha que corta feito um dardo a capa de água transparente deixando o olho perceber o que há lá embaixo, no fundo do rio onde pequenos torvelinhos borbulham e então podemos ver o leito do rio com toda sorte de coisinhas acontecendo, acontecendo... E, ainda assim, o mistério permanece não propriamente como algo que se esconde e, por isso, provoque sua busca. Talvez o mistério não apenas o que habita o Ytiwaua seja a busca, ela mesma, vinda de nós mesmos, esses seres que somos, espaço no qual o universo descobre-se a si mesmo.

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