21.10.10

FREUD COLOCOU O HOMEME NA PERIFERIA


Por Márcio Derbli
Primeiro foi Copérnico propondo que a Terra não era o centro do Universo. Alguns séculos depois um senhor chamado Darwin decretou: o homem não tem um lugar privilegiado na criação, é apenas o resultado da seleção natural. Em seguida, um médico nascido no antigo império austro-húngaro chamado Sigmund Freud feriu novamente “a megalomania humana” (segundo ele) de ser o centro de tudo: o homem não é o senhor de si, pois o inconsciente é mais determinante em suas ações. Assim, há 110 anos (publicação do livro A interpretação dos sonhos), Freud infligiu à humanidade o que ele, numa conferência em 1917, chamou de terceiro golpe narcísico, ou seja, o terceiro momento da história humana em que o homem deixou de ser o protagonista. Como o próprio Freud disse sobre a psicanálise e seus seguidores: “perturbamos a paz deste mundo”.
A psicanálise surgiu no início do século XX com as primeiras publicações de Freud. O livro A interpretação dos sonhos (1900) é considerado um marco do nascimento da teoria. Um ano depois de formar-se em medicina, em 1881, Freud trabalhou em Paris com o neurologista francês Jean Martin Charcot, interessando-se pelo uso da hipnose no tratamento da histeria. Em seguida, voltando à Viena, junto com Joseph Breuer, ele começou a desenvolver a teoria psicanalítica, propondo que os quadros de sintomas aparentemente neurológicos, mas sem etiologia comprovada – cegueira parcial, paralisia e alucinações –, chamados de histeria tinham, na verdade, origem psicológica. Ou seja, as emoções ou lembranças reprimidas seriam a causa dos sintomas, e, caso as pacientes conseguissem expressá-las, os sintomas desapareceriam. Se inicialmente fica estimulado com os resultados da hipnose, Freud abandona a técnica e propõe o método terapêutico da associação livre, no qual o paciente é orientado a dizer aquilo que lhe vier à cabeça, na ordem que vier, sem nenhum tipo de censura. O método é chamado pelo psicanalista de “regra técnica fundamental da análise”. Exposto inicialmente em A interpretação..., tal método supôs, por princípio, um terreno inconsciente na psique humana. A ideia do inconsciente já existia, principalmente nas artes, mas Freud a alçou à condição de determinante do comportamento e, a partir daí, com a revolução freudiana, o mundo conheceria a verdadeira “peste”, como dizia o próprio Freud.
A teoria disseminou-se por praticamente todo o mundo, de maneira variada em função do momento histórico e das diferentes culturas. Seus seguidores como Alfred Adler, Anna Freud, Melanie Klein, Alfred Bion, Jacques Lacan e tantos outros, continuaram a desenvolver a teoria destacando ou interpretando os ensinamentos de Freud, tornando a psicanálise cada vez mais conhecida e praticada.
Como não poderia deixar de ser, a teoria freudiana foi muito criticada no início. Surgida no seio de uma sociedade bastante restritiva em termos morais, na qual o discurso da sexualidade era praticamente ignorado, a psicanálise sugere que esta mesma sexualidade é responsável pela maior parte dos comportamentos e sintomas humanos e, para piorar, as crianças também vivenciam a sexualidade de diversas maneiras. Natural que a teoria sofresse resistência por parte de diversos setores da sociedade europeia e norte-americana.
Agora, um século e uma década depois, qual o balanço do impacto da psicanálise? Quem e o que ela teria influenciado?
Tanto na Europa, como no Brasil, a psicanálise influenciou diretamente as artes, por exemplo. O Manifesto Surrealista, encabeçado pelo psiquiatra francês André Breton, em 1924, foi profundamente marcado pelas ideias do psicanalista austríaco. No Brasil, a Semana de Arte Moderna de 1922 também recebeu influência da psicanálise, embora a teoria ainda tivesse quase nenhuma repercussão no país. (Leia matéria da ComCiência sobre o assunto).
Segundo Viviane Mosé, psicanalista, mestre e doutora em filosofia, a psicanálise teve uma importância fundamental no século XX: a alteração no modelo de homem e do pensamento racional. Segundo ela, desde o século X antes de Cristo, o homem acredita ser guiado pelo seu pensamento consciente, por sua razão, e a psicanálise fez a crítica sobre a identidade do sujeito. “Ele não é uma identidade, ele é uma guerra, é um conflito e isso é maravilhoso. A psicanálise serviu para tornar o homem mais amplo”, afirma.
Para Angelina Harari, psicanalista e membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), a teoria não apenas destitui o homem do controle da razão, mas também o desiludiu ao se contrapor à ideia de que ele procura seu próprio bem, ou seja, apontou o mal-estar na civilização e a tendência autodestrutiva do homem em sua subjetividade. A partir daí, segundo a psicanalista, o homem procura curar-se desse mal. Prova disso é a proliferação dos livros de autoajuda e o refúgio em seitas religiosas buscando a preservação contra a autodestruição. “O sujeito senhor de si é a pretensão que nos leva às mais diversas formas de tentar suturar e reforçar uma centralidade”, explica.
Segundo Harari, a principal contribuição psicanalítica para os dias atuais é a contraposição à classificação e à tendência de normalização dos indivíduos, realizada pela sociedade com os diagnósticos massificadores ou os ditames sobre o desempenho dos indivíduos nos círculos em que convive, como o familiar, o social ou o profissional. A psicanálise, segundo Harari, promove essa contraposição pela estimulação, na experiência analítica, da busca da singularidade.
Entretanto, após tantos anos, a psicanálise ainda é útil para o homem contemporâneo? Harari acredita que sim. “Ao analista lacaniano impõe-se sempre ser capaz de compreender a lógica de seu tempo e de estar à altura de sua época”, afirma. Segundo a psicanalista, Lacan (psiquiatra francês, 1901-1981) procurou transmitir aos seus próprios seguidores a importância do diálogo com outros campos do saber e sempre se preocupou com o contexto histórico.
Mosé, por sua vez, acredita que o modelo terapêutico da psicanálise não seja mais eficiente para escutar o homem contemporâneo, pois a técnica faz uma leitura a partir de um homem que não existe mais, alterado essencialmente pelas transformações que ela própria estimulou. Entretanto, ressalta Mosé, a psicanálise continua sendo fundamental e sua importância não diminui. “Hoje os psicanalistas acionam também outras teorias, como a filosofia”, diz ela.
A psicanálise também pode ajudar na compreensão de fenômenos como o bullying uso do poder ou da força para intimidar ou perseguir os outros, na opinião de Harari. “Freud levantou o véu que colocou a descoberto que a inocência não é tão ligada ao infantil. Existem problemas na vida em sociedade, ou seja, a civilização comporta problemas que acarretam certos fenômenos. Determinadas formas de agrupamento revelam-se nocivas”, analisa. Mosé acredita que a violência faz parte do humano e a escola deveria se preocupar mais em formar do que informar. “A violência não está com características diferentes, o seu aumento se dá por imaturidade política e social”, analisa Mosé.
A psicanálise atua com outras disciplinas
Harari conta que a Escola Brasileira de Psicanálise criou laboratórios multidisciplinares que praticam conversações nas escolas públicas e privadas, formando uma rede de pesquisa que coloca a criança como centro de estudo. “As conversações tratam dos problemas que afetam professores também, não somente as crianças. Aí se estuda a questão da inclusão”, explica a psicanalista da EBP.
E se não houvesse a psicanálise? O que poderia ser diferente na sociedade atual? Harari considera que o processo de anulação da individualidade, promovido pela aliança das visões da psicologia e da psiquiatria, teria sido mais perverso. “Sem a resistência da psicanálise não haveria forma de evitar os clichês em detrimento da subjetividade. No lugar dos indivíduos, um por um, com direito a uma forma de ser e gozar, teríamos bipolares, deprimidos, anoréxicos, obesos etc”. Segundo ela, esse processo, em nome de um cientificismo, procura definir um sujeito dentro de um diagnóstico onde cabem milhões e a psicanálise faz resistência a esse processo. “O que não implica em se desfazer do científico, mas sim encontrar sua justa medida”, conclui Harari.
Já Mosé considera que outra teoria teria nascido ocupando o lugar da psicanálise. Segundo ela, a teoria era um saber óbvio do século XIX e outro teórico acabaria construindo uma abordagem similar. Para ela, a psicanálise nasceu a partir de um século, o XIX, que criou a ilusão do homem conquistar a natureza e quando as verdades eram excludentes. Com o surgimento da teoria freudiana, a verdade se desintegrou e agora, em nosso século, partiremos para o momento das conexões, do encontro com a natureza. Quem viver verá.
Referência
Freud, S. (1917) Conferência XVIII: Fixação em traumas – o inconsciente. Obras Completas, V. XVI. Conferências introdutórias sobre psicanálise. pp. 281-292. Imago.


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A INVENÇÃO DA 'PLANITUDE'


Por Carlos Vogt
A Terra não é plana e isso a gente sabe faz alguns séculos. Ao contrário, é plena, densa redonda e “azul como uma laranja” segundo o poeta francês Paul Eluard. A cadelinha Laika, Yuri Gagarin e o Sputinik nos ajudaram a transformar o conceito em percepção sensível e metafórica dessa plenitude azul provocada pelo efeito de luz e cor da massa líquida do planeta, vista ao longe, à distância sideral do que é possível ver e imaginar, no tempo do espaço-tempo tocado como as cordas de um instrumento feito só de buracos negros e minhocas incomensuráveis.
A Terra não é plana, o universo se expande, as teorias para explicá-lo se esticam e tangem os limites da universalidade do que existe, percebido como existindo em aldeias de “planitude” global desadensadas de memória e carregadas de acúmulos flexíveis de informações.
Três projetos de impacto marcaram o século XX: o que levou o homem à Lua, o que o havia levado à bomba atômica e o que o trouxe de volta, pelo Genoma, à tentativa de compreender os segredos bioquímicos de sua própria vida.
Antes, no começo do século, Freud havia apontado as sucessivas quedas do homem, que, parafraseadas, poderiam nos levar a uma espécie de paradoxo do conhecimento, cujos elementos de composição e de articulação seriam os seguintes: o homem tem uma primeira queda quando é expulso do Paraíso, pelo pecado do conhecimento e pelo conhecimento do pecado; tem uma segunda queda, quando, pelo conhecimento, o heliocentrismo substitui a visão geocêntrica do sistema planetário; uma terceira queda o tira da escala de criatura humana por criação divina para colocá-lo na cadeia evolutiva das espécies; cai novamente, desta vez do centro da história, pelas explicações marxistas da economia de suas relações em sociedade; cai, por fim, de si mesmo, ao ser deslocado de seu eu consciente para as forças inconscientes que parametrizam os seus comportamentos, os seus valores e determinam as suas escolhas e opções quando não as próprias formas de como o sujeito é escolhido, apresentado e representado no palco de suas desilusões.
A primeira queda é mítica, a segunda é cósmica, a terceira é biológica, a quarta é histórica e a quinta é psicanalítica.
Caso faça sentido a saga de seus tombos, a conformação do paradoxo está em que quanto mais ele mergulha no conhecimento de suas profundezas e na profundidade do conhecimento de si e do universo que o circunscreve e que ele escreve, mais o homem é emergido para a superfície plana de sua deserdação e para “planitude” desértica de sua solidão solidária.
Por isso também é que o conhecimento é comovente, como atesta o livro Dez teorias que comoveram o mundo, de Leonardo Moledo e Esteban Magnani, publicado no Brasil pela Editora da Unicamp, em 2009, em tradução do original argentino, de 2006.
Escolhidas pelos autores estão o heliocentrismo, a gravitação universal, a teoria da combustão, o evolucionismo, a teoria atômica, a teoria da infecção microbiana, a relatividade, a teoria da deriva continental, a genética e o Big Bang.
Qual seria, então, a forma mais acabada do paradoxo dessa comovente história do conhecimento?
A meu ver, seria simples e transitória como é definitiva e complexa a provisoriedade da vida. Conhecer é um ato de coragem que nos leva de pergunta em pergunta ao confronto de alternativas: ou recusamos o conhecimento como dado, ou nos aventuramos no que nos é dado a conhecer. Neste caso, ainda que a biblioteca de nossos conhecimentos seja “periódica”, ela será também “ilimitada” como enunciou Borges sobre a Babel; no outro, seremos só definitivos e limitados pelos muros abertos do labirinto de areia do deserto de informações.
Há, assim, pelo menos, dois modos de conhecer: aquele que nos abandona e nos perde na “planitude” da informação acumulada, tornando-nos sábios-sabidos; aquele que, mantendo-nos em estado de ignorância crítica ─ o que chamei em outro artigo de ignorância cultural (“Ciência e bem-estar cultural”) ─, nos leva a desconfiar da miragem benfazeja do conhecimento dado e nos põe em constante estado de alerta para o que vem pronto, plano e amiúde, vale dizer, os monumentos instantâneos das certezas passageiras.
Neste caso, é muito provável que todos não sejamos sábios; é certo, contudo, que teremos sabedoria. A sabedoria paradoxal que quanto mais aumenta, mais nos faz crescer em conhecimento e mais nos diminui o conforto passivo das situações objetivas e subjetivas de cada conquista ética e cultural.
Nesse sentido, conhecer é erguer-se para cair, se a saga do conhecimento seguir acompanhada de novas e sucessivas quedas.
Se o paradoxo não evita a queda, ajuda a evitar, contudo, a “planitude” monumental do ruído da informação.

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