30.12.10

CHUVA DE BALA

Havia, naquele tempo, dois tipos de armas de fogo. As bem acabadas e as mal acabadas. As primeiras pertenciam aos coroneis e seus capangas. As outras, aos caboclos que terminavam servindo a um ou a outro coronel, ao fim das contas. De tão rústicas, essas armas improvisadas eram chamadas de paus-de-fogo. Se você fosse emboscado por alguém com uma pau-de-fogo, melhor seria pedir a Deus nosso senhor Jesus Cristo para morrer logo o mais depressa possível.  Naquela horinha mesmo, num tempinho entre o estinliguiesculacho do couro e o sapecamento do corpo mortinho da silva no chão. Atingido, e não morte de imediato, o sujeito se via numa situação constrangedora. Cegado pela chuva de bolinhas de chumbo e tendo que segurar os intestinos com as mãos, abertos os intestinos na horizontal por uma peixeirada, ficava vulnerável para a próxima saraivada cuspida de dentro de uma moita qualquer para onde o esfaqueador voltara. Pai e filho unidos na vingança. Esses crimes com armas improvisadas eram, geralmente, cometidos por maridos corneados, pais tentando recuperar a honra de filhas defloradas, cobradores de dívidas não pagas e coisas assim. Claro que, às vezes, para disfarçar, os coroneis lançavam mão desse tipo de armas para encobrirem melhor sua sede assassina por vingança. Essa última observação é por conta de um cronista da época, Epaminondas Gorbelindo Freitas da Silva e quem discordar que vá conversar com o mesmo em um cemitério, em Teresina. Faz setenta anos que ele está lá, debaixo de sete palmos de terra, alvejado exatamente por uma pau-de-fogo. E eu não tenho tempo nem disposição para explicar o acontecido aqui.

O emboscador calculava bem a coisa toda. O tempo que o desgraçado levaria para sangrar por tudo que era buraco, onde cairia só arquejando e, se tudo corresse como esperado, o assassino até se arriscaria a se identificar para o moribundo e dizer em alto e bom som o nome de quem o acabara de mandar dessa para uma melhor de uma vez para sempre, seu filho de uma puta.

Para o emboscado por armas bem acabadas, as coisas não eram, lá, muito diferentes. Apenas mais rápidas. Geralmente eram dois emboscadores. Um mirava na cabeça e o outro no tórax do condenado. Mais precisamente no coração. Dessa forma, morria-se mais rápido sem sentir muita dor. Isso em tese. Porque o negócio não é propriamente se morrer, mas ficar refém do maldito do sofrimento entre foder ou ter que sair de cima, se o filho da puta do emboscador fizer a desfeita de me errar o alvo e as malditas bolinhas de chumbo se esparramarem como caganeira...  Como costumava dizer Zé Peba, um dos mais temidos capangas daqueles tempos. Aliás, este morreria da maneira mais banal possível, de um escorregão numa casca de banana na ladeira do Pirapora. Pelo menos é o que conta ainda hoje mestre Raimundo Chaves, do alto de seus oitenta e poucos anos de vida. O mestre mora na Curva do Cotovelo, numa casa cujas paredes de pedra são uma belezura, segundo minha amiga socióloga me asseverou. Sempre que vou lá para as bandas do Morro do Gritador dou um jeito de passar pela casa do mestre para trocar uma prosa, tomar café com tapioca feito por sua filha e aprender sobre as coisas todas dessa terra de Nossa Senhora da Conceição, professor. Essas coisas dos Cafundós, o senhor tá me acompanhando?

Mas por que de se identificar para o moribundo antes que esse espichasse as canelas?  Porque muito mais que acabar com a raça do desgraçado interessava aos coroneis (eles quase sempre eram os mandantes) que o filho da puta fosse para o inferno sabendo quem tinha lhe comprado a passagem só de ida. Era assim que Zé Peba entendia a coisa toda, como entende mestre Raimundo Chaves.

Uma vez atingido pelas balas, o sangue que jorrava abundantemente era engolfado pela areia, muito abundante também nessas terras dos Irmãos Pereira. Mas piçarra também servia ao mesmo propósito de esconder as pistas mais evidentes do crime.

O crime, ele mesmo, porém, tinha que ser exposto com certa obscenidade que era para que todos soubessem, desconfiando, quem era que mandava, afinal, naquela merda ali de cidade.

A essa altura, segundo mestre Raimundo Chaves, Zé Peba já havia bebido umas seis doses de Serrana e falava pelos cotovelos. Mestre Raimundo Chaves diz que ele chegava a beber três garrafas de Serrana numa noitada só. No fim da vida, Zé Peba deu pra dar com a língua nos dentes, nos poucos que lhe restaram, e havia gente importante com medo de que, embriagado, ele metesse de uma vez por todas o pé na merda. Esse filho da puta ainda vai estrepar todo mundo, teria escarrado dos pulmões certo figurão da cidade. Tá na hora de botar uma rolha no cu dele.

Mestre Raimundo Chaves me confidenciou um desses acontecidos. No caso não foi propriamente uma emboscada no meio do mato por um ou dois capangas. Trata-se de uma cena de guerra urbana na qual se misturaram, provavelmente, o maior número de pessoas e cartuchos de bala por centímetro quadrado de que já se ouviu falar em Pedro II.

Você pode me acreditar que foi desse jeito mesmo. A capangada do Coronel de Cima, na verdade os revoltosos da Coluna, a capangada toda chegou de repente e começou a trovoar bala pra tudo que era canto pápápápápápá. Eu tava lá, eu vi. Primeiro se ouviu um chafurdar de pombo lá em cima da cumeeira da casa do Coronel de Baixo. E aí foi que veio a primeira saraivada de bala: páááá! E depois mais outra e mais outra: páááá! Páááá! E era um Deus nos acuda. Páááá!!! Todo mundo jogado no chão por ordem do coronel. Páááá´!!! Todo mundo se arrastando feito cobra, se enfurnado por debaixo das coisas feito peba. Pááá´!!! E foi aí que eu e mais outros três se passamo para o quarto de armamento e começemo a tirar as arma, uma a uma. As mulher é que ia carregando as arma e a gente começou a retribuir os tiro dos filho de uma égua que se aquartelava lá pras banda da pracinha. E tome tiro e tome tiro e nós devolvendo os balaço. Pááá´!!!! Quando terminou tudin e não ouvimo mais um estalar de nadinha. Fumo nos levantando do chão. E alguns de nós, mais afoito, pusero primeiro uma banda da cara e depois a outra para de fora da casa até sair de corpo inteiro. Quando foi minha vez, que eu saí e depois de andar uns passo me virei pro rumo da casa que tava nas minha costa, levei um susto danado. A parede da frente parecia taba de pirulito, todinha crivada de bala. Sou um cabra corajoso, mas o senhor pode me acreditar que eu tremia feito vara verde. Aí foi a vez de verificá se alguém tava baleado. Num tava não. Por milagre. Por puro milagre. O outro lado tinha batido em debandada. Coisas da política, num sabe?

Dali a uma semana, uma semana e pouco Zé Peba foi encontrado morto na ladeira do Pirapora. Uma casca de banana. E mestre Raimundo Chaves disse isso com um riso triste enquanto ajeitava o cachimbo. E remendou: imagine mermo, um cabra danado como era Zé Peba, de metê medo até no capeta morrê pur causa de uma casca de banana, imagine mermo. Cuma é que pode? Isso me faz lembrá as canturia de Antonio Sem-Braço, o sinhô não cunheceu não. Morreu faz tempo. Ele fazia canturia e numa delas contava a história de um general romano que perdeu tudo que tinha por amor de uma muié, mas aí é bem diferente, num é? Agora, casca de banana, essa não. Depois ficou pitando em silêncio.

Veio o café saboroso. Tomei e fiquei proseando mais um tantinho com o homem. Depois levantei-me, dei uma pancadinha em seu ombro e me despedi em silêncio. Em silêncio? Disse que o Gritador me esperava. Ou pelo menos devo ter dito. É, disse isso mesmo. Ele sorriu de dentro da nuvem de fumaça do cachimbo.

Uma vez contei essa história para os dos debaixo da figueira. Naquela noite todos deixamos a figueira cabisbaixos, andando para casa, como de costume, em pequenos grupos mergulhados em silêncio espreitados pela alma de Zé Peba escorregando em cascas e cascas de banana eternamente, não foi mesmo seu Vicente da comadre Joana?

 (Trecho do livro "Debaixo da Figuiera do Meu Avô", com previsão de publicação em 2011)

 SIGA-ME NO TWITTER @Getirana

Nenhum comentário: