2.7.09

BABUGEM COM RAPADURA

Eram manhãs ensolaradas aquelas de novembro. Havia as nuvens, aquelas nuvens em forma de mil e uma coisas. E depois daquelas nuvens havia o azul do céu inatingivelmente belo. Lá em cima, num campo estonteantemente azul, um enorme rebanho de carneirinhos pastava tangido pelos ventos da alta atmosfera. Um rebanho inteirinho banhado pelo sol. O menino de calças curtas sentado numa pedra próximo ao canteiro de dálias e crisântemos observava o rebanho celeste com a paciência que transbordava para além do tempo da manhã.

Com um graveto fazia desenhos na areia molhada do terreiro. Chovera na noite passada. Eram pássaros, montanhas, e anjos. Temas recorrentes.

Então, com a chegada dos outros primos, ia jogar bila. Os buracos eram cavados com alguns pedaços de pau e arredondados com o giro de 360º feito pelos pequenos calcanhares. Primeiro num sentido, depois no outro.

Jogava-se apostando dinheiro de papel, “conto de papel”, como se dizia. Eram as embalagens vazias de cigarro, abertas, depois dobradas e redobradas em forma de notas que eram disputadas a peso de ouro pela garotada.

Perto dali o avô, de calças arregaçadas, chupando um pedaço de rapadura, o tronco curvado ao máximo para frente.Arrancava com seus dedos trêmulos as babugens de mamona que teimavam em nascer constantemente sempre depois de alguma chuva por toda a extensão do terreiro.

Dona Alzira ao fogão de vez em quando saía à porta da cozinha para curiar a cena. O neto já sabia que não podia andar lá pelas beiras do talhado do Pimenta. Mas ela não confiava muito nisso. Afinal ele havia puxado ao pai, teimoso de se ver.

O velho Gonçalo Charuto não tivera filhos de si com a mulher. Pois agora também o neto não lhe era de si. Mas isso não importava muito. Tinha tido mais filhos e filhas que qualquer outra pessoa de Matões. Cada criança que ia levada pela mão das mães para Gonçalo Charuto rezar tornava-se um filho seu. Dali para diante sempre que se cruzassem os pequenos lhe tomariam a benção.

O menino corria de um lado para o outro do terreiro e o velho imitava um macaco perseguindo-o por entre os pés de ceriguela, pelo canteiro de palmas e de mandacaru. De vez em quando parava para tomar ar e o moleque ficava a lhe insultar com um sonoro “nem me pega, nem me pegará”. Dona Alzira mais uma vez veio à porta do quintal e dessa vez ficou absorta contemplando a cena que se desenrolava à sua frente.

As duas pontas da vida se encontravam ali no terreiro. Um com todo a sabedoria que a vida lhe havia dado. E tudo isso, ou pelo menos, parte disso estava estampado naquelas rugas que se multiplicavam a cada ano na face do homem.

O menino cheio de sonhos só queria saber de brincar. Para ele tudo era novidade, tudo era descoberta. Tinha a teimosia do pai. Mas aqueles olhos eram os de Maria Preta. Eram olhos de um profundo mergulhar nas coisas. De outras vezes ela mesma tivera medo do olhar do filho. Foi quando ela chegou num sábado quase ao meio dia e ele a esperava defronte à casa brincando com um montinho de piçarra.

Ao vê-la a certa distância abandonou a brincadeira e saiu correndo veloz no seu rumo. De repente parou e ficou a poucos palmos dela olhando-a de uma forma que ela nunca havia sentido antes. Depois dessa vez outras se seguiram e nos últimos tempos ela vinha evitando aquele olhar dele.

Alguém bateu palmas na porta da frente. Maria Preta caiu em si.

- Já vai, já vai.

Era dona Pureza cogitando um pouco de banha de porco.



Livros para breve: Cegante e Debaixo da Figueira do Meu Avô.

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