Espaço democrático para a arte, literatura e todo papo inteligente de quem, como eu, sabe que 'a vida é breve e a arte é longa', como diz o poeta. Bem-vind@ a essa boteco das arte, na TERRA DA OPALA (Pedro II).
23.3.09
SATÉLITE
foi do alto, lá do satélite
cruzando a noite cega
foi com a luz que não se vê
da visão que nasce de chips
e de um emaranhado de fibra ótica
que o olho biônico da coisa cibernética
focou-te cá embaixo
num espasmo de quase tortura
então a mancha roxo-tontura
te denunciou a existência em meio a um verde-cor-de catarro
e tudo eram manchas e linhas e coisas indefinidas
que teimavam em ficar indefinidas
na tela azul-pálido do meu computador
por mais que o zoom te devorasse
a tua radiografia esquelética
obscenamente exposta
chamou-me a atenção não propriamente pelo aspecto granulado
genuinamente engendrado pelo novo ângulo
mas pelo fato de me imaginar a vida quase inteira passada ali embaixo
homo-formiga: meu sofrimento, nada que uma pá de cal não dê jeito!
então eram crateras e reentrâncias e montículos e zonas mais planas
eram segmentos de retas te entrecortando
e eram pequenas zonas escuras e uma maior que todas: teu açude
eram semi-planaltos e pequenitas cordilheiras e serras e veredas pálidas
mas tuas fotos por satélite eram enganosas
de conteúdos não averiguáveis:
não revelavam teus mendigos pastando pelas praças
nem teus homens honrados planejando, na surdina da noite, suas traspassas cristãs
as fotos em seus pixels
não te denunciavam as meninas verdes vendendo-se pelos vãos do mercado central
espremendo-se entre espermas e sangue de bois ejaculados
nem diziam de tuas fofoqueiras de plantão e de seus maridos inchados
de seus filhos drogados, de suas vidas apodrecidas pela banalidade
todos nascidos sob o mais brando sol matinal de Matões
cotidianamente nascido para todos
dentro do domingo azul dos lençóis de cambraia
farfalhando ao vento que trazia consigo
o aroma bom dos jasmins, das begônias, das romãs ainda adormecidas nos cachos
de por sobre a cerca de melõezinhos-do-mato cravejados de marimbondos-feitosa.
e meu espírito-vento lambuzando-se com o mel de cana de teus engenhos
e os pensamentos dependurando-se nos fios de baba dos bois a girar
e o peito dos pés acariciando o bagaço da cana por onde já planavam as abelhas
e o jeito de se querer ir para a bananeira, trincheira última de bandeiras desfraldadas
mais o tempo de se ir indo pegar do violão
mais o tempo de se fazer uma canção
mais o tempo de se embrenhar pelos acordes das noites de lua cheia
e engolir o luar misturado a cachaça para se ser feliz ao menos uma vez na vida
porque o resto,
no dizer de Chico Mel Quente, “era querer caçar chifre em cabeça de cavalo”
no dizer de Passos, “era fazer que ia e ir mesmo”
no dizer de Chico Lagoa, “era ruim como o Diacho”
no dizer de Erone, “era só passar uma nos peitos e pronto!”
no dizer de Pedro Sabiá, “era esperar que ele, o mundo, parasse de girar”.
No dizer de Bodinho era “manter aquilo durinho até na hora de entrar no caixão”.
e quando se sabia da novidade
era de primeira e se trazia na cabeça as florezinhas miúdas
do grande Tamboril do mercado.
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